Gianlluca Carneiro e a educação artística como um coletivo

Gianlluca Carneiro e a educação artística como um coletivo

Como aprender sobre arte? Essa questão um tanto quanto subjetiva é trabalhada por um dos mais novos artistas a se juntar ao Coletivo Amarelo, o Gianlluca Carneiro. O artista e professor brasileiro está diretamente envolvido com projetos de cidadania e ética, e dentro da sala de aula, ele encontrou maneiras de introduzir aos seus alunos a política por meio da educação através da arte.

Conheça Gianlluca Carneiro e sua visão sobre a educação na arte

Em seu portfólio, Gianlluca compartilha um pouco de sua história. Nascido em Minas Gerais, no Brasil, o artista visual também é professor de história da rede municipal de Cariacica, no Espírito Santo. Além disso, Gianlluca é bacharel em direito e estudou arte e educação no CEFART em Belo Horizonte.

Desde muito cedo, mais precisamente desde os 6 anos de idade, Gianlluca se demonstrou um artista através da pintura. De lá para cá, são mais de 20 anos de carreira levando a sua arte para diferentes exposições em Minas Gerais, São Paulo e Espírito Santo. Sem contar as publicações em revistas e exibições de renome nacional e internacional, como a sua obra “Humor Azul, Coração Azul” que foi finalista na Doncaster Art Fair.

Gianlluca Carneiro denomina o seu universo artístico como Cabeça Vazia, uma brincadeira com o ditado popular “cabeça vazia, oficina do diabo”. Em suas próprias palavras: “O importante é que essa cabeça vazia vive cheia e ocupada em produzir obras com cores, traços e composições coloridas e caóticas sempre apoiadas em críticas às estruturas políticas e sociais e do modo de vida contemporâneo”.

O artista contemporâneo está alinhado com as discussões mais recentes presentes ao redor do mundo. Sendo uma delas, a importância de repensar o atual sistema de educação artística.

 

Documenta 15

Documenta é uma das maiores exposições de arte contemporânea do mundo e acontece a cada cinco anos na cidade de Kassel, na Alemanha. A exposição foi criada em 1955 por Arnold Bode, em uma Alemanha pós-guerra. Parte da sua motivação surgiu da necessidade de retomar a arte que foi banida pelo nazismo e reintroduzir o país às últimas tendências internacionais. Desde então, a exposição Documenta 15 virou uma instituição importantíssima no mundo da arte.

Em 2022, aconteceu a 15ª edição da exposição, curada pelo coletivo ruangrupa de Jacarta, na Indonésia. O coletivo baseou a Documenta nos valores e ideias de um termo bastante comum na Indonésia, lumbung, que significa algo como “celeiro comunitário de arroz”. A ideia de utilizar esse termo como um modelo artístico e econômico é baseada em princípios como a coletividade, a construção conjunta de recursos e a sua distribuição justa.

Nesta edição, vários pontos ressoaram e um deles dialoga diretamente com a arte e o posicionamento ativo de Gianlluca Carneiro, que é repensar as estruturas da educação artística contemporânea. Na exposição, isso se traduz a partir da ideia do coletivo e questiona o porquê não podemos aprender uns com os outros, quebrando paradigmas, como a figura de autoridade do professor?

Essa ideia de transformar a educação é expressada na Documenta 15 através da arte do *foundationClass, um coletivo formado em 2016 na Weißensee Kunsthochschule Berlin (KHB). O coletivo surgiu como uma plataforma educacional para arte e um conjunto de ferramentas criado para facilitar a vida de imigrantes que são afetados pelo racismo na Alemanha.

Para nos aprofundarmos nesse conceito de uma educação artística coletiva e conhecermos melhor o artista, o Coletivo Amarelo realizou uma entrevista com o Gianlluca Carneiro. Leia um trecho da nossa conversa, que abrimos com uma fala do artista que unifica todo esse pensamento por trás da educação artística e desse potencial não explorado.

Gianlluca: Vejo muito potencial artístico entre os meus alunos que dentro da escola não é tão explorado e eu, como professor e artista, tento trazer isso pra eles a todo momento. Trazer o que? Trazer ideias para despertar algo neles, desmistificar essa ideia de que arte é só no museu, sendo que na verdade a gente faz arte o tempo inteiro. E usar isso pra debater política

Coletivo Amarelo: Existem obstáculos dentro da escola para trazer esses novos modelos? Qual é a resistência?

Gianlluca: O mais louco de tudo isso é que eu faço parte de um projeto chamado Ensina Brasil, destinado para áreas de vulnerabilidade social, e por coincidência eu caí numa escola onde existem militares. Por um momento achei que isso iria ser um empecilho, mas consigo trazer o assunto da política de maneira mais profunda, sem discursos superficiais e também sem partidarismo. Mas fazer isso usando a arte, torna até o processo mais fácil dentro da escola, por incrível que pareça.

Coletivo Amarelo: A figura do professor é um lugar de conforto, de segurança, onde “não existem perguntas burras”, um espaço menos intimidador… Você, como professor, qual conselho daria para aqueles que querem começar a fazer arte, aprender mais sobre arte, mas não sabem bem por onde começar ou talvez se sintam acanhados?

Gianlluca: O afastamento da arte às vezes vem de linguagens muito complexas, difíceis da gente introduzir as pessoas… vou te dar um exemplo de algo que aconteceu comigo essa semana. Eu fiz um concurso de arte na escola, frisei que ia ter prêmio, mas que não era para estimular aquela competitividade agressiva e, sim, estimular a criação.

Um aluno meu da educação especial, ele tem um olho de vidro, baixa visão, e ganhou o concurso de desenho. Foi uma banca de fora, o sorriso dele era algo inacreditável. Outra aluna, com uma auto estima baixíssima, ganhou o concurso de pintura, e ela nunca conseguia enxergar o que ela fazia. Sempre dizendo que tudo que fazia era uma merd*… Isso me mostrou mais uma vez, que arte é aquilo que a gente faz da forma mais genuína possível.

O jeito de começar é de fato complicado, mas hoje temos tantas formas novas, coletivos como o Coletivo Amarelo, propostas alternativas, lugares que nos recebem de forma mais aberta e que estimulam a gente a fazer. Isso serve pra quem tá começando a fazer arte, consumir, viver disso. Por mais banal que seja, o segredo é se jogar por inteiro.

Coletivo Amarelo: Isso que você falou, sobre hoje termos acesso à tantas ferramentas e informações, às vezes assusta também. Pois talvez faça com que a pessoa fique um pouco sem saber por onde começar ou sem entender onde ela se encaixa nisso tudo… E a gente acaba esquecendo que o fazer artístico é um processo demorado, que leva tempo, uma digestão lenta mesmo. O processo do artista de ficar ali recluso, “esperando algo” acontecer, é extremamente solitário às vezes e super confuso.

Gianlluca: É um processo que demora muito mesmo. E a gente não faz para uma galeria, a gente faz porque tem que ser feito. Eu sou um pouco louco… eu tenho meu sketchbook, meus rabiscos… e as ideias vêm, as cores, as formas, e a partir delas eu vou experimentando. A maioria das vezes não chega aonde eu quero. São camadas que vão se construindo e, eu não tenho medo, não fico planejando demais, sou mais da ação.

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JERUSA SIMONE E A MULHER NO SURREALISMO

JERUSA SIMONE E A MULHER NO SURREALISMO

O Coletivo Amarelo está em constante crescimento e temos o orgulho de apresentar mais uma artista que fará parte do coletivo, a Jerusa Simone. A artista portuguesa, que hoje vive em Zurique, tem um olhar único angariado ao longo de sua vida e expressado através de sua arte. Ao tentar recriar memórias e emoções, o trabalho de Jerusa dialoga com o surrealismo.

Conheça Jerusa Simone, uma artista que recria momentos e experiências através do surrealismo

A arte de Jerusa Simone é baseada principalmente em suas experiências pessoais diárias, emoções e memórias recorrentes. Durante o seu processo, muitas vezes, a artista trabalha a partir de desenhos ingênuos que surgem de fundos abstratos desprovidos de uma ideia pré-existente. Desse modo, Jerusa abraça a pintura como um ato baseado em movimentos espontâneos e escolhas intuitivas.

Essa origem da arte no subconsciente e a tentativa de recriar memórias está diretamente ligada ao surrealismo, expressado através de suas criações. Seus objetos tomam formas a partir da sutileza e de linhas informais, formando figuras humanas, reproduzindo sinais visuais familiares, em conjunto com certa estranheza.

A fim de estimular o espectador visual e intelectualmente, todo o trabalho da artista consiste em reconstruir a conexão entre símbolos, significados, cores e texturas, independentemente do meio utilizado.

Jerusa Simone é originária da cidade do Porto, em Portugal, mas hoje vive em Zurique, na Suíça. A artista é formada em artes plásticas pela Escola Artística do Porto e pela Accademia di Belli Arti di Roma.

Nos últimos anos, Jerusa tem explorado diferentes suportes da pintura através da videoarte. Com isso, ela conseguiu a oportunidade de expor internacionalmente em diferentes contextos e lugares, como Portugal, Itália, Arábia Saudita, Inglaterra, Grécia, Espanha, Estados Unidos e, recentemente em seu país sede, a Suíça.

A mulher e o surrealismo

Neste ano, a Bienal de Veneza realizou a sua 59ª edição e pela primeira vez em 127 anos exibiu, em sua maioria, artistas femininas. Nesta edição, a Bienal abordou os mistérios do subconsciente humano e seus surrealismos a partir da perspectiva de artistas mulheres.

Curada pela italiana Cecília Alemani, a exposição explorou temas que orbitam a imaginação de diferentes realidades, o universo dos sonhos e novas percepções sobre o que significa ser humano. Além disso, interligou a influência da tecnologia na criação de novos seres e o resgate da nossa imaginação enquanto crianças.

A obra de Jerusa, por sua vez, está inteiramente ligada ao tema da exposição. Essa relação é marcada principalmente pela tentativa da artista em revisitar memórias através da pintura. Ao realizar esse exercício de memória, a artista cria cenários estranhos, porém um tanto familiar ao espectador.

Acompanhando essa tendência da mulher no surrealismo, Jerusa Simone cria algo surreal em meio aos tempos confusos e intensos que estamos vivendo.

Para recebê-la no Coletivo Amarelo e unir a sua visão única à nossa, nós realizamos uma entrevista com a artista. Leia um trecho da nossa conversa e conheça um pouco mais sobre Jerusa Simone, uma mulher que utiliza de suas vivências e do surrealismo para expressar sua arte.

Coletivo Amarelo: Sobre o quadro “Memórias de uma partida futura”, é interessante a brincadeira que você faz com as palavras: “memória” sendo algo que remete a um passado, de algo que ainda não aconteceu, que está no futuro. Existe uma certa tentativa de manipulação do tempo, de trânsito… fale um pouco mais sobre esse trabalho, qual foi o processo de criação por trás dele?

Jerusa Simone: Basicamente, aquele quadro foi feito em um momento muito específico de transição, estava na Itália, prestes a me mudar para a Suíça. Este sentimento é muito estranho, mas já era conhecido. Uma zona que eu já sabia mais ou menos que eu ia enfrentar. Lidar com a cena do novo e do velho, essa dualidade. O quadro está dividido em duas partes: a parte de cima com elementos relacionados à coluna italiana. Este corpo quase obeso, que é inspirado na obra do Lucien Freud. Eu olhava para aquele corpo, e queria trazer essa ideia do belo e do feio, e voltar a dar espaço para mulher, sem hipersexualizar o corpo feminino, mas trazer outros corpos. Eu queria me ver representada. Sempre tive muitos problemas comigo mesma, então olhando pros quadros do Freud, eu pensava: “Wow, isso é grotesco, mas tão bonito”. Esses corpos marginalizados, quase que um confronto, forçar o público a olhar. E o corpo sempre tem um contorno vermelho, e ele está sempre nos cantos, mas sempre presente. A posição reflete isso, essa fase de mudança, de medo. É um lugar familiar, mas dá medo.

CA: Tem uma qualidade de sonho, que acordamos e o sonho está muito nítido, e conforme o tempo vai passando, os detalhes do sonho vão se dissipando. E seu trabalho tem essa característica de memória um pouco embaçada. Como que é fazer uma pintura que reflete o seu momento presente, e depois de anos, revisitar essa mesma pintura e olhar para essas memórias, um pouco confusas, com essa qualidade de sonho? Algo mudou?

Jerusa Simone: Olhando pra ele agora, eu consigo sentir todas as minhas motivações, eu lembro de todos os elementos que eu coloquei, que eu eliminei… e agora nesse momento estou no sítio que eu queria estar quando fiz esse quadro. Já estou na Suíça faz dois anos, mas, entretanto, eu superei esse meu medo que estava muito presente nesse trabalho. Esse elemento de colocar a mão no fogo é algo que eu uso muito, é quase que um auto retrato, eu me coloco em perigo, mas não consigo evitar. Uma autossabotagem, uma cena de transição, de deixar algo para trás.

CA: Essa pintura ilustra um evento de transição pessoal sua, que você se mudou de um lugar para outro e colocou os elementos que estavam presentes nesse processo. Mas por mais que isso tenha sido um recorte específico da sua vida, eu consigo olhar para isso e me enxergar ali de alguma forma, talvez em alguma transição que eu estive, mas faço isso por meio de um sonho de outra pessoa. Quase como se eu tivesse visitado o sonho de outra pessoa.  Você acha que isso faz parte do surrealismo feminino?

Jerusa Simone: Tive a descobrir esse pequeno nicho (o surrealismo feminino), que é esse jogo que eu faço com vários elementos, essa troca de significados dos elementos que eu uso, e conforme o tempo vai passando e vou acumulando novas vivências, coisas vão sendo apagadas e se transformando. Então o meu trabalho faz esse jogo, quase que um quebra cabeça mesmo…

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