Sobre tempo: Dárida Rodrigues

Sobre tempo: Dárida Rodrigues

Para dar continuidade à nossa discussão sobre o tempo, conversamos com a artista Dárida Rodrigues, originalmente de São Paulo. A sua investigação materializa-se através de instalações audiovisuais, caminhadas com áudio, performances e site specifics como uma tentativa de investigar a arte relacional e a própria consciência humana. Dárida partilhou conosco a experiência de criar no período de isolamento, o papel da abundância do tempo na prática artística e a sua relação pessoal com o passagem do tempo.

Gostaria de começar falando sobre a intencionalidade por trás do seu trabalho em “alongar o tempo” para uma observação mais atenta dos nossos arredores e daquilo que vive dentro de nós também. De onde surgiu essa necessidade de unir a prática artística com métodos meditativos?

D: Bom, sinto que o tempo, ou melhor, o passar do tempo é das únicas constantes na nossa experiência, enquanto tudo muda. E a possibilidade de que o tempo “pare, se alongue ou voe” a partir da nossa percepção sobre cada experiência particular, sempre me interessou muito. Acho que esse fenômeno de mudança de percepção e sobretudo, a relação que se estabelece entre isso e os nossos estados mentais e emocionais, é também, das coisas que sempre me conectaram às práticas meditativas há um bom tempo. 

Então acho que essa abertura de um espaço interno onde a temporalidade se desdobra em outras configurações possíveis e que simultaneamente, permite com que se possa habitar mais integralmente o momento presente, que eu explorei muito através da meditação, de esvaziar nem que seja por alguns segundos a mente, atravessa também o meu trabalho acho que de maneira anterior à uma intencionalidade. É realmente uma brecha que me atrai enquanto investigação e que me interessa explorar nesta transposição de territórios entre arte e vida, talvez porque, pelo menos para mim, estes campos do meditativo, ou do espiritual, se quisermos, é também o campo onde arte opera. Vem se tornando naturalmente parte do processo integrar ou até subverter métodos meditativos ao experimentar criar relações entre subjetividade, tempo e espaço.

O seu último trabalho “Vice-Versa” explora essa ideia de movimento dos afetos que interligam o dentro e o fora, a recepção e expressão de informações e imagens… E o trabalho também acabou ilustrando a passagem do tempo por meio da observação do fluxo de pessoas na rua e as interações com a obra em si. O que você colheu da experiência em criar o trabalho “Vice-Versa”? 

D: Ainda estou processando essa colheita…porque o trabalho desvelou muitas camadas que têm sido interessantes de observar. Mas posso dizer que esse impulso de experimentar uma inversão de ponto de vista, aproveitando essa relação entre o dentro e o fora que o espaço da montra e da rua proporciona, através do recurso do video projetado, permite que muitas outras relações se estabeleçam e se confrontem, como por exemplo a do tempo com o espaço, no espelho invertido que não reflete diretamente o observador, criado através do video e que chama bastante a nossa atenção pela possibilidade de vivenciar 2 ou mais temporalidades em simultâneo, como a do que se passava dentro, a do que se passava fora, no momento presente e a do que se passava no que se via em ação na vídeo perfomance/espelho projetado, que ainda trazia outras velocidades, repetições e intervenções e que mediava essas diversas relações entre sujeitos plantas, transeuntes do presente e da imagem. Sinto que vale explorar esse espaço temporal relacional ainda mais.

O seu outro trabalho [Des]segredo propôs uma trajetória de um trajeto mapeado para percorrer a obra em um determinado espaço. Como que trabalhos site-specific manipulam a nossa percepção do tempo?

D: No processo de criação de [Des]segredo, que era também um projeto de mestrado, a audio-wall À Luz, desenvolvida para um percurso específico no edifico das Belas Artes de Lisboa, que é uma construção muito antiga, de materialidade histórica, onde se sente o peso não só material mas temporal também; foi interessante explorar a proposição de uma deriva interior (ou meditativa) através do deslocamento no espaço, como um processo de aproximação a um lugar comum de relação um para um, em torno da ideia de Segredo, que era proposta no final. 

A partir dessa paisagem sonora trazida pelas instruções por voz, vivenciada e recriada no presente ao se caminhar pelo espaço e também através das temporalidades subjetivas que acontecem no momento, para cada participante, pude observar também como uma viagem espaço/temporal feita especificamente para existir num espaço em âmbito artístico, pode não só influenciar (ou manipular) a nossa percepção do tempo mas também ser influenciada por ele. Isso porque sinto que as obras site-specific vinculam-se intrinsicamente ao espaço, ao mesmo tempo em que se abrem, através desta possibilidade da manifestação de um espaço temporal subvertido, para intervenções e transformações do mesmo e neste sentido, são muito interessantes nesta exploração do universo interior e relacional em diálogo com a temporalidade.

A obra [In]surgir, que foi criada durante a quarentena, é outro trabalho seu de imersão auditiva. Um dos nossos questionamentos dentro do tema tempo é investigar a forma que a falta ou abundância de tempo afeta os processos de criação. Como foi criar esse trabalho durante um período de isolamento?

D: Foi no mínimo um bom exercício de interrogação, tanto que no começo eu chamava a série [In]Surgir de “Exercícios para “Tocar o devir, Abraçar a dor e Mastigar o real”.

Eu, que havia decidido meio que transgredir no campo da arte, alguns métodos meditativos, ao propor o deslocamento, a distração, a uma poética que me implicava pessoalmente nos textos e nos áudios, de repente sentia que a vida pedia antes de mais nada, digerir, com uma inédita limitação de espaço e movimento, uma realidade distópica e incerta, onde estes métodos de meditação “convencionais”, apesar de muito úteis fisiologicamente, não pareciam fazer mais tanto sentido pra mim naquele momento. Era realmente uma necessidade integra-las com o processo de criação. Então passei a escrever essas audio instruções para trabalhar com as possibilidades de uma abstração meditativa e sensorial a partir desta condição de confinamento e da súbita pseudo-abundância de tempo e impossibilidade de movimento, com todas as emoções e interrogações que surgiam e insurgiam internamente.

É possível para artistas usufruírem da natureza esotérica do processo de criação num mundo extremamente acelerado como o que vivemos hoje?

D: Sim, difícil pensar o que não é possível em termos de arte. Mas pessoalmente, sinto que é essencial se deixar existir na vida e na arte da maneira mais integral que é possível para cada um, para não sermos totalmente engolidas ou capturadas pela vida extremante capitalizada e midiatizada, que caracteriza o “humanismo” instituído, falho, mas acelerado de hoje.  E acho que esse universo esotérico, espiritual ou transpessoal é bem mais amplo e presente na nossa experiência subjetiva, do que muitas vezes imaginamos ou intelectualizamos, especialmente porque operamos quase sempre dentro do pensamento hegêmonico ocidental, onde temos dificuldade em abrir espaço para o que não pode ser configurado por esses parâmetros e assim não nos conectamos com as possibilidades de intuir e criar rituais ou feitiços próprios naturais mesmo e não “sobrenaturais”, para explorar nosso universo interior e inventar outras realidades. O campo artístico é terreno bem fértil para essa exploração, na minha opinião. Muito do que encaramos como parte de uma natureza esotérica e que não se relaciona com o pensamento racional que conhecemos, pode ser prática comum para algumas outras comunidades e espécies, por exemplo. Se enxergarmos ou fizermos arte apenas a partir do ponto de vista da nossa (muitas vezes limitada) cultura vamos sempre deixar de fora experiências e vivências que talvez sejam fundamentais para existir e quem sabe, florescer de fato e politicamente no presente. Não vejo espaço/tempo mais receptivo para isso do que a arte.

Hilma af Klint

Hilma af Klint

Para iniciar nossa discussão em torno do tema TEMPO, hoje trazemos o trabalho da artista Hilma af Klint, que criou mais de 150 pinturas entre os anos de 1906 e 1915. Essas pinturas foram chamadas de “As Pinturas do Templo” e consistem principalmente em imagens abstratas e formas orgânicas inspiradas pela geometria da natureza. O trabalho de Klint apresenta um mundo além daquele que conhecemos; que transcende seu tempo atual e desafia a forma como observamos a realidade.

Klint imaginou um templo que abrigaria as pinturas e o descreveu em um de seus muitos diários como um “edifício redondo, onde os visitantes subiriam por uma escada em espiral em uma jornada espiritual”. A descrição de Hilma é extraordinária, pois ela descreve o Museu Solomon R. Guggenheim na cidade de Nova York, que seria construído apenas décadas depois e também seria o museu anfitrião de sua exposição individual “Pinturas para o Futuro” em 2018. Frank Lloyd Wright, o arquiteto do Guggenheim , criou um lugar não tradicional para a arte não- objetiva e tanto ele quanto Klint compartilhavam uma afinidade com as formas orgânicas e o simbolismo espiritual em torno da espiral. Tanto a visão arquitetônica de Wright quanto as pinturas de Klint foram uma ruptura com a tradição, oferecendo uma nova abordagem à expressão criativa.

O misticismo de Klint envolve muitos interesses em ocultismo, teosofia, espiritualismo e conceitos científicos. As pinturas para o templo serviram como um testamento para os espíritos superiores e o artista passou quase uma década trabalhando nelas. Suas pinturas abstratas mudaram o curso da história da arte e colocaram a questão: qual é o papel do tempo no processo esotérico de fazer arte?

Como artistas podem manipular a passagem do tempo por meio de suas práticas?

Tempo

Tempo

Qual é o papel da temporalidade no processo artístico?

O conceito de tempo tem estado no centro da expressão artística, desde os traços rápidos dos impressionistas até a observação do tempo em relação ao espaço de Bruce Nauman; o tempo serviu tanto como uma catapulta para o surgimento de novos pontos de vista quanto como tema para investigações mais profundas. A forma como os artistas entendem o tempo no contexto de sua prática sempre refletiu a dinâmica entre o artista e as demandas externas do mundo, seja por meio da contemplação ou da intervenção.

Como vivemos em um mundo em constante mudança, extremamente acelerado e nossas experiências sociais são mediadas por demandas frenéticas, como a falta ou abundância de tempo afeta a prática artística?

Alguns pontos principais a serem considerados:

A temporalidade no processo de produzir arte

Em primeiro lugar, é importante pensar sobre as maneiras pelas quais o tempo se inseriu na prática artística e como os artistas tentam retratar a natureza abstrata e invisível do tempo por meio das artes visuais. Em segundo lugar, o ato de contemplar uma obra de arte também é intercambiável, pois a própria obra muda ao longo do tempo, ganhando novas percepções e significados. Nagel e Wood (2010) argumentaram que as obras de arte sempre “habitam temporalidades plurais”, já que uma obra de arte é feita por alguém em um determinado momento, mas se refere a ideias ou eventos que muitas vezes precederam aquele momento, ou apontam para um futuro imaginado. (Serafini e Bancos).

A prática artística orientada pelo portfólio

Enquanto os artistas trabalham em condições cada vez mais limitadas de tempo, tendo que ser autossuficientes e produzir trabalhos para formatos e plataformas específicos (um portfólio, um site ou mídia social), sobra espaço para surpresas e experimentações lentas?

À medida que nossos ambientes digitais se tornam mais complexos, a necessidade de produzir trabalhos que sejam relevantes para os tempos atuais parece ser a única maneira “correta” de fazer arte. Mas se os tópicos relevantes mudam constantemente e é impossível acompanhar sua velocidade, sobra algum tempo para permitir que as ideias se desenvolvam organicamente? Como os artistas podem usufruir da natureza esotérica – e muitas vezes lenta – do processo criativo no mundo de hoje?

Escassez de tempo ao observar arte

A falta de tempo quando se trata de artes visuais gera um impacto não só no criador, mas também no espectador. Quanto ao espectador, ainda temos tempo suficiente para exercícios de contemplação? Qual é o tempo ideal para a experiência estética?

Fique ligado nas próximas semanas enquanto investigamos essas questões e outras mais relacionadas ao tempo e à arte.

Fontes:

Nagel, Alexander & Wood, Christopher (2010): Anachronic Renaissance, New York: Zone Books.

Serafini, Paula & Banks, Mark (2020): Living Precarious Lives, Time and Temporality in Visual Arts Careers